Dona Alila, um armarinho centenário e três histórias de amor no Sertão Sua trajetória tem sido, para si mesma e para os outros viventes do Pajeú, um verdadeiro presente

Publicação: 19/08/2017 03:00

Como Alila foi parar atrás do balcão da Casa Lyra é a parte mais curiosa – ao mesmo tempo bonita e triste – da história. Foi um gesto de delicadeza do destino, depois de dois golpes de dor. Em maio de 1987, enquanto organizava a festa de Dia das Mães no colégio, Alila recebeu um telefonema da cunhada que morava na capital do estado. Soube, ali, de seu afastamento da diretoria da Oliveira Lima, decisão já homologada pelo governo do estado no Diário Oficial.

“Eu tinha passado a madrugada preparando um bolo para a homenagem às mães. Fiquei olhando aquele bolo na minha mesa, sem acreditar no que tinha acabado de ouvir. Fiquei muito magoada com (Miguel) Arraes, que era o governador… Muitos diretores foram substituídos no estado, não era nada pessoal. Mas foi tanta tristeza naquele dia, que eu pensei que minha vida tivesse acabado”, lembra Alila, que se emociona sempre que resgata os bons tempos na comunidade escolar. Hoje, ela garante, costuma rezar todos os dias pela alma de Arraes. Não fosse a destituição do cargo de diretora, não teria assumido a Casa Lyra quando foi preciso.

“No meu último dia na Oliveira Lima, telefonei para Mário e pedi que tirasse o Fusca da garagem para me buscar no fim da noite. Eu tinha muita coisa para carregar, não queria que ninguém me visse subindo a ladeira com minhas pastas na mão, chorando. Meu marido era meu melhor amigo, chorou comigo quando dei a notícia”, conta. Alila não sabia, mas aquela se revelaria sua última chance de conviver mais com o marido, que morreria três anos depois.

“Fiquei devastada com a demissão, mas terminou sendo um presente para nós dois”, avalia, quase 30 anos depois. Nos últimos anos com Mário, aprendeu a manejar o estoque e o caixa do armazém Casa Lyra, que ela mesma transformou em armarinho nos anos 1990. Era mais fácil manusear linhas, botões, zíperes e carretéis – do armazém original, restam à venda somente parafusos, de todas as espessuras e tamanhos. “O armarinho me dá alegria, não dinheiro. Nunca tirei nem um dia de folga, porque aqui eu me mantenho ativa, faço contas, arrumo as coisas, vejo as pessoas, me lembro de Mário”, explica, outra vez apaixonada.

As placas na fachada da Casa Lyra ajudam a reconstruir os fatos. “Por este centenário, agradecemos aos nossos amigos Mário Lyra (Tatá) e Alila pela dedicação na continuidade desse trabalho”, diz uma delas, fixada no casarão em 2015, quando o armarinho completou um século de fundação. É um registro da história de amor de Alila, a única que ela viveu. “Fui felicíssima. Diziam que éramos o casal número um da cidade e não porque a gente tivesse luxo, não era isso. Era porque andávamos juntos para todo canto, participávamos de tudo que acontecia em São José do Egito. Enquanto foi vivo, Mário fez absolutamente tudo o que eu quis, acredita? Depois, ainda me deixou a Casa Lyra, que me mantém viva e lúcida até hoje”, ela conta.

Os dois não tiveram filhos, mas pode-se dizer que estão perpetuados na memória do município, nas paredes do armarinho secular. Para agradecer a generosidade do destino, Dona Alila vai à missa nas primeiras sextas-feiras de cada mês. Ela espera sempre por mais “visitas”, como chama os clientes, para ter com quem conversar. Recebe com menos frequência os fornecedores, pois tem feito menos pedidos diante da baixa demanda, e não acha justo com Lúcia, nem com os gatos, repetir sua história mais uma vez – eles sabem tudo de cor. Mas a história de Dona Alila tem sido, para si mesma e para os outros, um presente. Ela mesma pode assegurar que algo de extraordinário lhe moldou o percurso: “A vida que eu quis, do jeitinho que eu sonhava, caiu aqui, minha filha, bem na palma da minha mão.”

Para visitar
Dona Alila abre as portas da Casa Lyra entre as 8h e as 9h, todos os dias, quando é recebida pelo gato Papaizinho, criado ali dentro. Por volta das 17h30, segue para casa junto com Lúcia e encontra os outros quatro gatos de estimação – Chuchu, Suzi, Kiko e Florzinha. A Casa Lyra fica na Rua João Pessoa, nº 49, no Centro de São José do Egito, no Sertão de Pernambuco.

O importante é ficar na ativa

Para a médica Zilda Cavalcapnti, conselheira do Cremepe (Conselho Regional de Medicina de Pernambuco), manter-se ativo na terceira idade garante ao idoso um envelhecimento “ativo” – de qualidade superior ao envelhecimento “saudável”. Isso significa que, além de ter a saúde controlada, o idoso preserva suas atividades de rotina.

“Dona Alila precisa decidir o que comprar para o armarinho, quantos produtos encomendar, como gerenciar o caixa e calcular os trocos de seus clientes.

Isso faz com que ela preserve não somente a independência, mas a autonomia. Significa que ela pode, além de caminhar, tomar banho e se vestir sozinha, tomar decisões por conta própria”, explica a médica.

Para chegar aos 92 anos saudável e ativa, segundo a especialista, é provável que Dona Alila tenha componentes genéticos que favoreçam a longevidade. “Ela, de fato, deve ter um organismo mais saudável. Além disso, deve ter humor mais estável, ser tranquila, sem traços de depressão. Acredito, ainda, que Alila não seja dependente do que chamamos de polifarmácia, quando é necessário o uso contínuo de mais de cinco medicações, o que reduz os malefícios causados a muitos idosos pelos efeitos colaterais dos remédios”, avalia. Para Zilda, a sarcopenia (doença que, em linhas gerais, diminui a capacidade dos músculos do corpo) é um dos principais males combatidos pela atividade diária – mental e física – na terceira idade.

Lúcia, a companheira fiel
Poucos meses após a partida de marido, uma das cunhadas de Alila enviou uma pessoa para lhe fazer companhia: não poderia deixar a viúva sozinha na pequena cidade do Sertão. Lúcia de Souza Silva, hoje com 53 anos, tornou-se companhia fiel para Dona Alila e, com o passar dos anos, assumiu as funções e recebeu o carinho que poderiam pertencer a uma filha do casal. “Ajudo a cuidar dos gatos, do armarinho e dela”, conta Lúcia, mulher discreta e de poucas palavras. É ela quem puxa as portas e afasta as trancas pesadas da Casa Lyra pela manhã. Também não teve filhos, o que ajuda a lhe conferir atitude maternal em relação a Alila. “Ela cuida de mim, mas é a filha que eu não tive. Chegou num mês de setembro, um presente divino para mim”, lembra Dona Alila. Ela sorri ao dizer que, graças a Lúcia, jamais se sente só – um alívio quando cai a noite sobre o Sertão.
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