Ainda órfã de políticas públicas Vila 27 de Abril está entre comunidades que não se sabe se ficam no Recife ou Jaboatão dos Guararapes

Publicação: 18/08/2018 03:00

A Vila 27 de Abril está na lista de comunidades que, por estarem no limite, não pertencem nem ao Recife nem a Jaboatão dos Guararapes. “Essa incerteza leva a uma falta de políticas públicas. Houve por muitos anos um esforço para regularizar a situação, mas você precisa mudar a legislação federal para redefinir limites. Há cinco anos, a discussão arrefeceu”, diz a coordenadora da Equipe Técnica de Assessoria, Pesquisa e Ação Social (Etapas), Isabela Valença.

A ONG Etapas chegou à Vila também por mobilização das domésticas, para traçar um perfil das ausências da comunidade, há 20 anos. Até hoje, tenta tapar os buracos identificados naquela pesquisa. Desde 2016, realiza atividades de enfrentamento à violência doméstica e comunitária com atividades de conscientização e cultura popular, no conselho de moradores. Mas nem tudo depende deles. Rumo a completar três décadas de luta, as domésticas e seu bairro ainda esperam a cidadania plena.

Mas se hoje ainda é difícil, no início era bem pior.  Os metros quadrados eram divididos em um vão, que acumulava as funções de cozinha e sala, e um quatro. O banheiro estava do lado de fora. Não havia portas nem janelas, mas buracos de entrada e saída que davam acesso a três ruas sem calçamento e iluminação. As construções estavam afastadas a mais de uma hora do centro, na divisa entre a capital e a região metropolitana, comendo poeira dos caminhões que passavam ao lado, na principal rodovia do país. Esse lugar, na fronteira entre ter e não ter, materializou um sonho que completará 30 anos.

Os primeiros dias no improviso. A iluminação interna das casas era à luz de velas. Sem banheiros privativos, eles compravam penicos para fazer necessidades fisiológicas e depois corriam para um terreno baldio nas redondezas para jogar fora os excrementos. Sem portas e janelas, empilhavam tijolos nos buracos como medida de segurança e privacidade. Também colocam tijolos no chão para dormir mais confortavelmente e evitar o frio e a umidade do piso sem cerâmica. Na primeira noite, Eunice foi dormir na casa de uma amiga, com medo. Depois, tomou coragem.

“Vida de escrava” não é exagero de Eunice. Quando ela começou a trabalhar, não havia salário. Os patrões deram sabonete, creme dental, uma muda de roupas usadas e uma lista de obrigações. “As patroas nos devam roupas e sapatos que não queriam mais. Nós só não tocávamos no dinheiro”, diz Eunice.

Fazia 68 anos que o Brasil tinha abolido a escravidão, mas ela se perpetuava de outras formas. Até hoje, mais de 80% dos trabalhadores domésticos brasileiros são mulheres e, entre eles, quase sete de dez são negras. Existem 7,2 milhões de trabalhadores domésticos no Brasil, o país com maior número de cargos nessa profissão. Sete em cada 10 delas não possuem registro profissional.

“Há um entendimento, que vem do regime escravocrata, de que o trabalho físico e doméstico não é digno. Nesse sentido, há uma superexploração das mulheres negras, com regimes de trabalho longos e desgastantes”, diz a professora de pós-graduação em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Liana Lewis. Essa herança seria a explicação para que, há apenas cinco anos, o Brasil equiparasse os direitos trabalhistas dos domésticos aos das demais categorias, por meio da Emenda Constitucional 72 (conhecida como PEC das Domésticas). “Há um selo patriarcal e racista que explica esse atraso. O trabalho doméstico apoia a possibilidade de realizar vários outros trabalhos”, diz a pesquisadora do SOS Corpo Rivane Arantes.

A luta dos domésticos começou em 1936, quando Laudelina de Campos Melo fundou a Associação dos Trabalhadores Domésticos do Brasil. Laudelina, que começou a trabalhar como trabalhadora doméstica aos 7 anos, teve uma ação fundamental para que, em 1972, a Lei 5.859 reconhecesse o trabalho doméstico como uma função e estabelecesse a assinatura do portfólio profissional.

Em 1988, a Constituição trouxe o direito ao salário. Eunice e seus companheiros usaram seus primeiros ganhos para garantir a casa: o cálculo do pagamento da propriedade foi feito com base nesse dinheiro. Todos os meses, 10% eram deduzidos para pagar as casas sem portas ou janelas.

Saiba mais

Brasil

  • 7,5 milhões de moradias é o déficit no país
  • 33 milhões de pessoas não têm onde morar
  • Dados da Fundação Getúlio Vargas de 2015
Pernambuco
  • 108 mil unidades habitacionais é o déficit na Região Metropolitana do Recife
  • 280 mil pessoas sofrem com a falta de moradia no Recife
  • Dados da Ong Habitat Brasil