Sintonizado no rádio do seu coração O Brasil perdeu ontem Moraes Moreira, aos 72 anos, um gênio no hibridismo de gêneros que fez um "zunzum" na música brasileira

EMANNUEL BENTO
emannuel.bento@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 14/04/2020 03:00

Moraes Moreira passava os últimos dias vagando entre o apartamento e o escritório, localizados no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro. Aos 72 anos, no ócio proporcionado pelo isolamento social, tocou e escreveu sem parar. Na madrugada de 17 de março, por exemplo, nasceu um cordel intitulado Quarentena: “Pra combater o que alarma / Só tenho mesmo uma arma / Que é a minha caneta”, registrou o cantor, compositor e instrumentista, abordando com sutileza e sagacidade temáticas atuais em nove estrofes de sete linhas. Era um dos seus últimos escritos. Ontem de manhã, o corpo dele foi encontrado imóvel na cama do apartamento da Gávea, onde morava sozinho. Ele morreu após sofrer infarto agudo no miocárdio enquanto dormia. Os familiares não divulgaram informações sobre o velório para evitar aglomerações diante da pandemia.

Antonio Carlos Moreira Pires nasceu em Itaçu, no Sertão da Bahia. Ainda na adolescência, começou a tocar sanfona de 12 baixos em festas de São João, casamentos e batizados no interior. Esse começo com o instrumento não foi definidor da trajetória, marcada pela versatilidade e pelo hibridismo de gêneros musicais. Mais tarde, mudou-se para Salvador para estudar medicina e, após ver o mar pela primeira vez, aceitou o destino de artista ao entrar no Seminário de Música da Universidade Federal da Bahia. Na pensão que encontrou para morar, conheceu Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão. Com a chegada de Baby Consuelo e Pepeu Gomes, os Novos Baianos começam a se consolidar.

O grupo alternativo desafiou o regime militar ao viver de forma anárquica e comunitária no Sítio do Vovô, no bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Foi quando Moraes fez grandes colaborações para álbuns como É ferro na boneca (1970), Acabou chorare (1972) e Novos Baianos F.C. (1973). Acabou chorare é constantemente lembrado como um dos melhores discos da música brasileira, fundindo sonoridades nacionais como samba, frevo e baião com o rock - de uma forma que o tropicalismo de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé ainda não havia feito.

Parte dessa façanha teve colaboração de João Gilberto, que visitou no Sítio do Vovô e tocou choro para os jovens hippies. Moreira assistiu àquelas dedilhadas do juazeirense com atenção. Assim fez em outros momentos, com outros excelentes músicos. Em 1975, ele iniciou uma carreira solo tendo Armandinho Macêdo como parceiro. Nessa época, tocou no embrionário trio elétrico de Dodô e Osmar em 1976, quando o carnaval de Salvador ainda começava a ganhar os contornos atuais. Nessa época, lançou Pombo correio, Bloco do prazer (ambas de 1979) e Vassourinha elétrica (1980), músicas fundamentais para a consolidação do carnaval de rua da capital soteropolitana.

Moraes Moreira lançou mais de 40 álbuns. Em todas as décadas, reinventou-se para novos públicos e gerações. Nos anos 1990, lançou O Brasil tem conserto (1994), parceria com o maestro e arranjador Vitor Santos, que mesclou a música popular com a erudita, inovando em harmonia e melodia. Nos anos 2000, retorna ao baião e ao samba em Bahião com H (2000), por acreditar existir um interesse por música regional. Em De repente (2005), surpreende pela fusão do repente nordestino com a cultura hip hop, com direito a elementos eletrônicos e do rap.

Os Novos Baianos retornam em 1997 e em 2017, quando seguiram fazendo shows até recentemente. Em ambas as ocasiões, Moreira sempre negou que a reunião tenha sido por um caráter comercial. “Tanto não é comercial que às vezes até se torna”, brincou, em entrevista de 2016. O seu objetivo era a arte, prova disso é a vasta obra que fica para admiradores, artistas e próximas gerações. Conhecer o legado Moraes Moreira, paragrafando uma composição sua, é como abrir e a porta e janela para ver o sol nascer.

Homenagens

“Triste. Muito triste com a partida de Moraes. Ele foi e sempre será um dos maiores artistas da nossa geração. Saudade de nossos papos nas saudosas noitadas do Baixo Leblon. Saudade do dia em que lhe concedi o título de Bicho Maluco Beleza em um inesquecível carnaval em Olinda. Consigo voltar no tempo e vê-lo cantando: ‘Tem gente / Tem gente que pensa / Que eu sou o Alceu Valença / Também já me aconteceu: Pensarem que Alceu era eu’. Abraço forte meu irmão. Você continuará através de suas músicas a comover e alegrar os corações e mentes de nossa gente”
Alceu Valença, cantor

“Amigo querido, parceiro de tantas histórias, sua obra é um marco na música e seguirá eterna, assim como sua lembrança em nossos corações. Um abraço imenso em seus filhos e em todos que conviviam com a sua alegria. Siga em paz”
Geraldo Azevedo, cantor

“Moraes foi, para mim, uma retomada na minha vida. Com ele, a partir de 1974, nascem as primeiras gravações do trio elétrico Dodô e Osmar. Vivemos como família, como irmãos. Essa partida foi um baque. Eu acordei dizendo que sonhei com Moraes. E, com certeza, acho que foi como uma visita dele. Ele me ligou na última sexta e conversamos mais de uma hora. Moraes estava se despedindo de mim”
Armandinho Macêdo, músico

“Amigo querido, grande artista que selou, lacrou um patamar histórico na música brasileira. Será lembrado por tantas belas canções que marcaram nossas vidas! Sentiremos saudade!”
Elba Ramalho, cantora

“Menino do sertão da Bahia, ouviu encantado a música do mundo e fez dela seu universo expressivo. Deixa saudade e uma grande obra”
Gilberto Gil, cantor

“O legado de Moraes Moreira fica como um símbolo da grandeza da produção musical baiana da sua geração. Uma referência revolucionária no campo da arte de compor e tocar música popular, música de carnaval, música afro-baiana, música pop urbana, pensamento transcendental, urbano e universal. Diversidade melódica e harmônica, capacidade e sintetizar rock, ijexá, bossa, frevo e samba. Fez o Brasil subir a ladeira e não deixou as três raças do Brasil sem poesia. Adeus Seu Moraes, até um dia.”
Margareth Menezes, cantora