23 vidas refeitas por inédita rede de solidariedade Mutirão transformou esta semana a vida de crianças e adolescentes pernambucanos que sofriam com escoliose

reportagem: silvia bessa
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Publicação: 14/12/2019 03:00

Dos episódios em que era chamada de “troncha”, “mal feita”, com tom preconceituoso e debochado; e dos olhares de estranhamento, ou curiosidade, a jovem Isabely Camily Santana do Nascimento lembra com pesar. Foram muitos, todos tristes. “Eu procurava ignorar, elevar minha autoestima para não ficar pior, até porque nasci assim, mas era difícil”, confidenciou na última quinta-feira, enquanto numa sala do posto 4 do Bloco de Traumas do Hospital Otávio de Freitas, no Recife, aguardava a chance de iniciar o seu ano novo.

Isabely, 16 anos, moradora de Olinda, passou por uma cirurgia de escoliose grave nesta sexta-feira. Era uma das 23 pacientes beneficiadas por um mutirão inédito no Brasil que durou cinco dias esta semana. Foi uma ação ímpar pelo volume de pacientes atendidos, por arregimentar recursos e esforços para realização de procedimentos que custam em média R$ 300 mil. Por reunir 86 especialistas em saúde. E por ser resultado de uma rede de solidariedade público-privada sustentada por profissionais liberais (sendo 15 médicos de 10 estados do país), oito empresas privadas e pelo governo de Pernambuco. O mutirão chegou como uma força transformadora para Isabely, Mayara, Mariana, Sthefane, Herbert, Erika e mais 18 pernambucanos.

“Diminuímos em alguns meses a fila do SUS em Pernambuco”, comemorou o ortopedista pernambucano Carlos Romeiro, coordenador do movimento pela Brazilian Spine Study Group (BSSG). “Foi um momento emocionante ver o quanto podemos modificar a vida dos pacientes e seus familiares”, disse Romeiro. Como Isabely, foram atendidos crianças e adolescentes com idade entre 10 e 18 anos de 14 municípios diferentes.

A jovem Isabely se recupera bem. A expectativa é que dentro de poucos dias saia andando do Hospital com a coluna ereta e orgulho idem. O projeto “Isabely 2020”, diz, já está em curso. “Vou brincar no carnaval de Olinda de biquíni, linda, e quero vestir roupas coladas no corpo no dia-a-dia, como tanto sonhei”, confidenciou, falando sobre a vergonha que sentia por mostrar o desvio da coluna. Havia passado por outras duas internações frustradas (“eu me internava para ver se dava certo, mas por algum motivo nunca deu”), e vivido o périplo de hospitais públicos em busca da correção da sua coluna. Aos onze anos, a avó começou a notar que um dos lados do corpo pendia para um lado. A avó insistiu em recomendar médico. Era a escoliose mais comum começando a surgir. Cerca de 90% dos pacientes sofrem com a escoliose idiopática e 7 meninas para cada 1 menino apresentam sintomas. “A minha apareceu junto com o início da menstruação”, conta. É o mais comum, despontando entre os 10 e 13 anos. A escoliose é uma deformidade vertebral tridimensional que pode ocorrer como consequências de doenças como a paralisia cerebral ou sem causa conhecida.

No mutirão, havia caso de paciente com ângulo de até 80 graus na coluna. O problema causa dores diárias, dificuldades respiratórias em consequência da postura, inibição do desenvolvimento muscular, impede algumas atividades físicas. Além de traumas psicológicos. “O estado de Pernambuco tem de 150 a 200 pacientes na fila para correção desta doença. Aqui, operamos de três a quatro por mês”, explicou o médico Antônio Almeida, diretor do Otávio de Freitas, que preparou a unidade hospitalar, liberando a UTI pediátrica, abrindo leitos, equipamentos e medicamentos e dispondo de profissionais para que o mutirão acontecesse.

Nesta sexta-feira à noite, Isabely estava em recuperação. Passava bem. Dois dos 23 pacientes que fizeram a cirurgia no primeiro dia receberam alta e passarão o final de semana em casa com a coluna reparada. Para eles, agora, é levantar a cabeça e seguir em frente: o caminho está só começando.

Mutirão em números

  • R$ 100 mil é o valor médio gasto com aparelhos em uma cirurgia deste tipo
  • R$ 300 mil é o custo médio da cirurgia, contando com honorários médicos e hospitalares
  • R$ 6,9 milhões seria o custo real, caso todas as despesas com os 23 pacientes beneficiados fossem computadas por apenas uma fonte pagadora
  • 340 parafusos foram utilizados
  • 10 bandas sublaminares, que substituem parafusos e funcionam como um cordão para suspender a haste
  • 34 hastes, espécie de conexão principal presa por parafusos e principal responsável pela correção da deformidade
  • 15 horas ininterruptas por dia de trabalho foram doadas pelos médicos envolvidos na ação
  • 5 horas em média são utilizadas em uma cirurgia de escoliose com uma equipe experiente. O tempo, no entanto, varia de acordo com a gravidade do ângulo da curvatura da coluna do paciente
  • 10 estados representados no staff de médicos: Pernambuco, Goiás, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Maranhão, Piauí, Paraná, Paraíba e Rio Grande do Norte