texto: João Vitor Pascoal | joaovitor.pe@dabr.com.br
Publicação: 27/08/2016 09:00
Não é de hoje que o Recife ocupa o posto da capital mais desigual do Brasil. O título perdura há 25 anos. Quando se trata de concentração de renda, numa escala que vai de 0 a 1, o Recife ocupa nada menos que 0,6894 - bem superior ao último indicador brasileiro, de 0,490. É o coeficiente de Gini, apurado continuamente pela Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (Pnad) e a cada censo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A cidade não só é líder entre as capitais como também é única de grande porte na lista das 50 mais desiguais entre os 5.570 municípios brasileiros.
“O coeficiente de Gini representa o grau de concentração da renda do trabalho (assalariado ou não) e das transferências sociais. Não leva em conta resultados de variações patrimoniais (vendas e compras de bens imóveis) nem de rendas oriundas de aplicações financeiras, que, se fossem contabilizadas, revelariam desigualdade ainda maior entre os recifenses”, esclarece o doutor em geografia humana e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Jan Bitoun.
Considerando dados aferidos pelo Banco Mundial, se fosse um país o Recife encontraria, na Namíbia e na África do Sul, nações que ocupam mesmo patamar de desigualdade - a primeira, apenas independente em 1990, após profunda exploração alemã e sul-africana e a segunda, que ainda sente os efeitos do fim do apartheid, regime de segregação racial, em 1994. “Penso que o mais destoa o Recife de outras localidades, mesmo no Nordeste, é a deficiência nos serviços de infraestrutura, particularmente os serviços de saneamento (água, esgoto, drenagem e lixo), educação e saúde”, aponta o professor do departamento de sociologia da UFPE Ronald Vasconcelos.
Precariedade que acaba afetando fatia significativa da população de forma contínua. De acordo com o IBGE, o Recife não só ocupa a liderança de desigualdade desde 1991, como ainda expandiu seu índice em 2000 e 2010. “Parte do povo tem representação numa cidade dual, em que existe uma periferia onde a ausência dos serviços de infraestrutura e habitações precárias condena extensas parcelas da população já combalidas pelo baixo poder aquisitivo”, acrescenta Vasconcelos.
Bitoun destaca ainda que o Atlas de Desenvolvimento Humano no Recife, realizado em 2005, mostrou um cenário em que, apesar de melhorias de indicadores sociais, o abismo econômico se evidenciava, o que cria bolsões de desenvolvimento ou pobreza que convivem em disparidade na cidade. “Se existiam impactos positivos nos campos do acesso à educação e aos serviços de saúde no âmbito da implantação do SUS, a renda se configura no núcleo duro da desigualdade no Recife”, relata.
Igualdade não Anunciada
“Desigualdade para mim é pobreza”, resume Maria Anunciada da Silva. Aos 77 anos, mora com o marido - de cama, depois de um derrame - e duas filhas (uma com deficiência cognitiva), na beira de uma das diversas barreiras do Morro da Conceição, Zona Norte recifense. Barreira firme, de concreto, sem risco de cair - bem diferente do cenário encontrado ao chegar, há 40 anos, de mudança do Córrego do Euclides.
O quintal, à beira da barreira, é quase uma varanda - como as centenas que vislumbra no horizonte, no alto de prédios resultantes de décadas de mudanças na cidade. “Daqui de cima eu via tudo. O aeroporto, a (Avenida) Agamenon, até o mar de Boa Viagem! Agora é só prédio em cima de prédio”.
A vida de Maria Anunciada na capital pernambucana começou cedo, já com contornos de trabalho. Vinda de Goiana aos 15 anos para “trabalhar em casa de família”, como define. E família, para ela, sempre esteve ligada ao trabalho. O pai e a mãe saíam de casa logo cedo pra trabalhar na roça. Ela, com seus 11 anos, ficava em casa, cuidando dos irmãos. Diariamente, ia até uma cacimba e buscava água, balde na cabeça. Ler e escrever eram luxos só realizados nas netas, que passam a tarde em sua casa, enquanto os filhos estão no trabalho. “Nunca fui numa escola. Digo para elas que têm que dar muito valor ao que estão tendo, porque tem muita gente que não tem”, conta, convicta.
Quando era um pouco mais velha que as netas, já lavava e passava para famílias recifenses. Num dos trabalhos, conheceu o marido, Manoel Ferreira. É da aposentadoria dele, de uma oficina, que vem a maior parte do ganho familiar - quase R$ 2 mil. Renda destinada, em sua maioria, para a compra de fraldas e remédios para ele. “Dá pra viver, mas é a ‘continha’”, resume o drama mensal.
“O coeficiente de Gini representa o grau de concentração da renda do trabalho (assalariado ou não) e das transferências sociais. Não leva em conta resultados de variações patrimoniais (vendas e compras de bens imóveis) nem de rendas oriundas de aplicações financeiras, que, se fossem contabilizadas, revelariam desigualdade ainda maior entre os recifenses”, esclarece o doutor em geografia humana e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Jan Bitoun.
Considerando dados aferidos pelo Banco Mundial, se fosse um país o Recife encontraria, na Namíbia e na África do Sul, nações que ocupam mesmo patamar de desigualdade - a primeira, apenas independente em 1990, após profunda exploração alemã e sul-africana e a segunda, que ainda sente os efeitos do fim do apartheid, regime de segregação racial, em 1994. “Penso que o mais destoa o Recife de outras localidades, mesmo no Nordeste, é a deficiência nos serviços de infraestrutura, particularmente os serviços de saneamento (água, esgoto, drenagem e lixo), educação e saúde”, aponta o professor do departamento de sociologia da UFPE Ronald Vasconcelos.
Precariedade que acaba afetando fatia significativa da população de forma contínua. De acordo com o IBGE, o Recife não só ocupa a liderança de desigualdade desde 1991, como ainda expandiu seu índice em 2000 e 2010. “Parte do povo tem representação numa cidade dual, em que existe uma periferia onde a ausência dos serviços de infraestrutura e habitações precárias condena extensas parcelas da população já combalidas pelo baixo poder aquisitivo”, acrescenta Vasconcelos.
Bitoun destaca ainda que o Atlas de Desenvolvimento Humano no Recife, realizado em 2005, mostrou um cenário em que, apesar de melhorias de indicadores sociais, o abismo econômico se evidenciava, o que cria bolsões de desenvolvimento ou pobreza que convivem em disparidade na cidade. “Se existiam impactos positivos nos campos do acesso à educação e aos serviços de saúde no âmbito da implantação do SUS, a renda se configura no núcleo duro da desigualdade no Recife”, relata.
Igualdade não Anunciada
“Desigualdade para mim é pobreza”, resume Maria Anunciada da Silva. Aos 77 anos, mora com o marido - de cama, depois de um derrame - e duas filhas (uma com deficiência cognitiva), na beira de uma das diversas barreiras do Morro da Conceição, Zona Norte recifense. Barreira firme, de concreto, sem risco de cair - bem diferente do cenário encontrado ao chegar, há 40 anos, de mudança do Córrego do Euclides.
O quintal, à beira da barreira, é quase uma varanda - como as centenas que vislumbra no horizonte, no alto de prédios resultantes de décadas de mudanças na cidade. “Daqui de cima eu via tudo. O aeroporto, a (Avenida) Agamenon, até o mar de Boa Viagem! Agora é só prédio em cima de prédio”.
A vida de Maria Anunciada na capital pernambucana começou cedo, já com contornos de trabalho. Vinda de Goiana aos 15 anos para “trabalhar em casa de família”, como define. E família, para ela, sempre esteve ligada ao trabalho. O pai e a mãe saíam de casa logo cedo pra trabalhar na roça. Ela, com seus 11 anos, ficava em casa, cuidando dos irmãos. Diariamente, ia até uma cacimba e buscava água, balde na cabeça. Ler e escrever eram luxos só realizados nas netas, que passam a tarde em sua casa, enquanto os filhos estão no trabalho. “Nunca fui numa escola. Digo para elas que têm que dar muito valor ao que estão tendo, porque tem muita gente que não tem”, conta, convicta.
Quando era um pouco mais velha que as netas, já lavava e passava para famílias recifenses. Num dos trabalhos, conheceu o marido, Manoel Ferreira. É da aposentadoria dele, de uma oficina, que vem a maior parte do ganho familiar - quase R$ 2 mil. Renda destinada, em sua maioria, para a compra de fraldas e remédios para ele. “Dá pra viver, mas é a ‘continha’”, resume o drama mensal.